Diálogos sobre a morte




Hoje em dia cada vez mais educadores estão questionando e propondo uma reforma dos currículos escolares e provavelmente esse assunto irá ocupar por um longo tempo o centro das discussões que irão promover uma transformação educacional, colocando a escola em um papel cada vez mais relevante na construção de uma sociedade mais humana e civilizada.

Existem temas que são quase consensuais quanto à sua pertinência, tornando-os fortes candidatos a ocupar uma cadeira definitiva nos currículos, como a educação ambiental. Porém hoje gostaria de chamar a atenção para um outro tema não menos relevante, que é a questão da morte.

É necessário dialogar sobre o que significa a morte. Com a revolução sexual das décadas de 1960 e 1970 derrubaram-se vários tabus impostos pelo silêncio da igreja, porém nunca aconteceu uma revolução semelhante que reivindicasse a abertura do diálogo sobre a importância que a morte tem nas nossas vidas. Ainda é um assunto reservado a dois olhares opostos em significação, mas idênticos em mistério: de um lado, as religiões, se propondo a decifrar o que existe do outro lado, condicionando seus seguidores a ter que acreditar em tais afirmações; Do outro, a ciência, que se propõe a desacreditar qualquer explicação religiosa, mas não propõe outra via.

Por que dialogar sobre a morte é tão importante? Primeiramente, porque a morte possui diversos aspectos que vão além do biológico (como os aspectos social, filosófico, antropológico, psicológico, epistemológico, etc.) e uma grandeza de significados que, ao se revelar, torna sua aceitação mais fácil. Além disso, todos nos confrontamos com a morte diversas vezes ao longo da existência, até que por fim, enfrentamos esse mesmo processo em nossa própria pele. Mas como existe uma convenção social que nos impede de falar sobre o assunto, não existe preparo algum para enfrentar a partida dos seres queridos nem muito menos nossa própria morte. É como se pudéssemos evitar a presença sombria da morte apenas ignorando sua existência. E assim, somos atingidos por um golpe terrível e “inesperado” quando tais acontecimentos recaem sobre nós e não raramente nos questionamos: “Por que eu?”… Como se a morte fosse algo improvável, fruto do azar, quase um castigo. Esse é o resultado de uma cultura que celebra o ponto de partida e se esquece do ponto de chegada, que vive como se nunca fosse morrer e, por consequência, morre como se não tivesse vivido o suficiente.


A importância da morte em nossas vidas


Antropologicamente falando, acredita-se que a morte foi o que deu origem à filosofia. À medida que o ser humano percebeu que ela atinge tanto aos fortes quanto aos covardes, aos bons e aos maus, nivelando a todos, ignorando a importância de cada pessoa ou o que fez em vida, então o homem começou a analisar qual seria o real sentido da existência, se o fim de todos é sempre o mesmo.

Por que tememos a morte? Pode ser que nem todos temam a morte, mas toda pessoa de juízo a evita, e por quê? Porque a morte significa o rompimento com tudo que nos dá a noção do que somos. Não importando se acreditamos ou não em vida após a morte, ela representa a separação de tudo que construímos sobre nós mesmos ao longo da existência.

A morte é assunto que comumente nos estimula a reflexão sobre a vida e sobre o que temos feito de nossa vida. Com a revolução industrial e o surgimento das grandes cidades, o homem contemporâneo perdeu a noção de que se nutre da vida e que, portanto, é um agente da morte. O alimento já chega pronto (limpo, cortado e embalado) até sua mesa e, em sua experiência, a origem da carne ou da verdura que consome é a prateleira do supermercado. Além disso, o cinema trata de banalizar o assunto em determinados filmes, desvinculando a morte de suas implicações psicológicas. Em muitos filmes de ação o herói mata dezenas de figurantes, sem que exista espaço no roteiro pra qualquer crise de consciência por tanta matança.

Sabemos que toda nossa cultura é influenciada pela questão da mortalidade. A maneira como vivemos e as prioridades que adotamos deixam transparecer nossas crenças sobre a morte. E isso vai se consolidando como padrões morais e sociais que têm sua origem em necessidades históricas e que não têm mais contexto, como é o caso de enterrarmos nossos mortos. Essa tradição surgiu na Caldéia, há milhares de anos atrás, quando os povos nômades começaram a fazer isso como uma forma simbólica de enraizar-se e estabelecer um vínculo com a terra, pois ali estava o local de descanso de seus ancestrais. Como o judaísmo, cristianismo e islamismo compartilham dessa mesma raiz, continuamos com essa prática.


Educação para a morte?


Alguns acreditam que não existe nada depois da morte, outros acreditam que se vai para algum lugar segundo o que se fez em vida, outros acreditam que se retorna à vida em um novo corpo. Como então se poderia estruturar uma “educação para a morte” sem tocar em pontos que conflitassem com as crenças dos indivíduos?

Por mais que a ciência ainda não disponha de métodos para estudar este campo (ou não os reconheça como científicos), é necessário percebermos a utilidade e a importância de se acreditar em algum tipo de continuidade após a vida. Parafraseando Voltaire, podemos dizer que “se não existisse vida após a morte, teríamos que inventá-la”. A pessoa que tem algum tipo de perspectiva pós-morte costuma lidar melhor com o momento da perda de um ente querido ou até no momento de sua própria morte. Essa espiritualidade não precisa estar revestida de um conjunto de dogmas religiosos; muito pelo contrário: às vezes são os dogmas religiosos e seus valores inflexíveis que fazem a pessoa temer uma condenação eterna e tornar o momento da morte ainda pior. Porém a espiritualidade saudável, leve e reflexiva, que se constitui pela atribuição de significado às coisas, acaba tornando-se um fator essencial para incrementar nossa qualidade de vida e, porque não dizer, nossa transição para a morte de forma menos dolorosa.

Muitos praticantes espirituais se exercitam na meditação com o intuito de conseguir manter a mente calma nos momentos de maior confusão e ruído. E a morte, seguramente, é o momento de maior confusão que enfrentaremos. Basta imaginar-se na situação de nossa própria morte para termos uma ideia do que isso significa. Estaremos provavelmente agonizando, talvez de forma intensa ou talvez com um sofrimento que vem se prolongando desde muito tempo. Talvez sentindo que já não há perspectivas de melhorar ou quem sabe mentindo pra si mesmo que vai dar tudo certo no final. Podemos estar percebendo que ninguém pode nos ajudar e tudo que os outros conseguem fazer é observar com pena nossa próprio drama evoluir. Medo, dor, solidão. Isso desemboca em um misto de emoções conflitantes que pode tornar a partida muito pior do que a simples cessação biológica.

Deveríamos criar uma outra cultura sobre a morte. Uma cultura de diálogo nos permitiria ter menos autopiedade e menos raiva diante do processo, seja nosso ou alheio. Dizer para os familiares o que gostaríamos que fosse feito na hora de nossa morte. Falar do que acreditamos que vai acontecer conosco depois da morte, tudo isso desmistifica esse fantasma que um dia virá ao nosso encontro.

Um aspecto interessante é que a morte pode ser utilizada como o último grande ensinamento aos que ficam. Saber que a pessoa que está morrendo está em paz, está confortável e está encarando a situação de forma natural enche a todos que vivenciam esse processo de uma motivação incrível para viver. Sócrates, por exemplo, não só aceitou a sua condenação, como ainda nos dias que antecederam sua execução instruiu os seus discípulos com a mesma motivação de sempre. E ainda disse que gostaria de aprender flauta, antes de morrer! E isso só pra citar um caso, dentre centenas de que trata a história.


Tomada de consciência na hora da morte


Muitas tradições espirituais – especialmente as orientais – enfatizam que, ao morrer, nossa consciência experimenta uma expansão súbita, porque já não está condicionada às limitações biológicas. Por isso, morrer em paz nos abre a possibilidade de desfrutar dessa experiência como um encontro com nossa autêntica realidade. Ao contrário, passar por esse umbral repleto de medo, ansiedade e confusão nos deixaria confuso o suficiente para não perceber o que essa experiência nos traz. Podemos acreditar ou não nessas palavras, porém elas se tornam muito úteis no momento em que estamos diante do inevitável.

Ao longo dos anos, fui percebendo que a natureza nunca nos tira nada sem dar algo em troca: vamos perdendo a inocência e com ela ganhamos percepção; depois,  perdemos juventude, mas ganhamos experiência; perdemos a saúde, mas ganhamos o aprendizado, enfim. O nosso problema está sempre na incapacidade de perceber a troca e agarrar-nos ao que já não pode seguir conosco. No fenômeno da morte acontece exatamente igual. Quanto mais preso ao que vamos deixar para trás, mais difícil parece ser a morte. Por isso, existem duas coisas importantes que toda pessoa deveria ter ao morrer.

A primeira é a consciência de que viveu o seu próprio caminho e que por este caminho passaram as coisas que eram necessárias ao nosso aprendizado. Mesmo que não tenhamos agido corretamente diante de cada circunstância, na morte é o momento de tomar consciência das coisas que ficaram inacabadas ou mal feitas, dar um fechamento a elas, ainda que seja meramente mental (aceitação, aprendizado, perdão, perdoar a si mesmo) e descartá-las, exatamente da mesma forma que deveríamos fazer todas as noites antes de dormir, a fim de ter uma boa noite de sono.

A segunda coisa importante é, no caso de estarmos vivendo um processo de morte lenta, termos alguém do nosso lado que nos ajude a completar esse processo. A principal característica dessa pessoa (ou dessas pessoas) é nos ajudar a fazer as perguntas certas sobre nós mesmos e sobre nossa vida e permitir que possamos falar em voz alta e trazer à tona tudo que está pela metade, tudo que nos traz angústia, nossas incertezas, nossos medos, nossas lembranças. Alguém que esteja aberto a ouvir de igual pra igual, sem piedade. Que esteja disposto a encontrar junto conosco o sentido do que vivemos. Que possam rir juntos das histórias engraçadas e dar a devida seriedade às incertezas do que está por vir. Isso, obviamente, requer treinamento, estudo, reflexão… Coisas que só vão acontecer quando a sociedade começar a dialogar sobre a importância de se ter uma morte digna, independente das crenças que cada um tem.

Unknown

4 comentários:

  1. Pois é como muitos tem discutido na filosofia, parece que falar em morte hoje é proibido, algo inexistente, querem esconder algo que um dia acontecerá e não tem jeito...muito importante você tocar nesse assunto, bagis, parabéns.

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  2. Bom, confesso que tenho medo da morte, tanto para mim quanto para meus familiares que amo tanto.

    Mas faz parte e o último parágrafo foi muito importante falando da morte lenta, nós termos alguém ali naquele momento para nos apoiar, para voltar as lembranças boas e ainda dar algumas risadas. Isso terminaria muito diferente, mais confortável pelo menos, eu acho.

    A dor da morte é inevitável, mas devemos aprender a aceitá-la.

    Amei o post!

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